MULHERES

Desafio para a saúde pública, violência obstétrica é debatida na Câmara

Termo enfrenta resistência e não há consenso sobre sua definição e terminologia. Foram ouvidos profissionais de saúde e sociedade civil

sexta-feira, 18 Junho, 2021 - 15:15

Foto: Cláudio Rabelo/CMBH

Debater a violência obstétrica e avançar em respeito às boas práticas no seu combate. Com esse objetivo, a Comissão de Mulheres promoveu, nesta sexta-feira (18/6), audiência pública com a participação de pessoas ligadas à sociedade civil, ao poder público e à comunidade médica que lidam com o tema no seu dia a dia. O encontro foi solicitado pela vereadora Iza Lourença (Psol), que presidiu a reunião marcada pela ampla representação e profundo debate. “Esse é um momento de escuta daquelas que tratam do tema e o do que elas têm a nos falar. Não é a primeira vez que esse assunto é debatido na comissão. Ele já foi trazido pela (ex-vereadora) Sônia Lansky nos primeiros dias de nossas atividades”, disse Iza ao abrir a audiência. “É a oportunidade de dar continuidade aos acúmulos que tivemos aqui”, confirmou Bella Gonçalves (Psol). A Comissão de Mulheres deve encaminhar pedido de informação sobre o cumprimento das orientações da Comissão Perinatal por parte da PBH; ações de fortalecimento do programa Gestação Legal, da Defensoria Pública de Minas Gerais; e indicação ao Executivo para que as maternidades públicas e privadas de BH retomem a ação das doulas. 

Segundo os Cadernos Ibero-americanos de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz, a violência obstétrica é entendida como toda violência física, moral, patrimonial ou psicológica praticada contra as mulheres no momento do parto, pós-parto e puerpério. A questão teve, nas últimas décadas, relativo aumento no interesse de estudiosos, devido principalmente ao movimento feminista e a grupos que tentam resgatar a fisiologia do parto e o protagonismo da mulher nesse momento. É o que indica o Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em artigo divulgado em fevereiro deste ano. Segundo a UERJ, conforme estudos de base populacional realizados no Brasil, a prevalência de violência obstétrica tem variado entre 18,3% a 44,3%. Ainda de acordo com a UERJ, muitas dificuldades têm sido enfrentadas para tratar do tema, como “a falta de definição dos atos de violência obstétrica, falta de consenso em relação ao termo utilizado, dificuldade de mensuração, poucas evidências sobre as consequências na saúde materno-infantil e, por fim, falta de políticas públicas para coibir esses atos”.

Violências

“Falar que é possível nascer de forma respeitosa no Brasil e que também é possível que as mulheres se sintam respeitadas em todos os momentos é um tema ainda mal resolvido. É preciso dizer que violência obstétrica não se restringe ao parto e que as mulheres são violadas em vários contextos”, disse Danúbia Mariane, enfermeira obstétrica e coordenadora da Câmara Técnica de Saúde das Mulheres do Conselho Regional de Enfermagem (Coren). Segundo ela, é preciso ter um olhar ampliado para o tema, reconhecer que há um contexto pesado para as mulheres e que já existe arcabouço legal no Brasil que discute o fenômeno. “Há ainda uma banalização por parte dos profissionais de saúde. Deixam fluir e legitimam as ações. O corpo da mulher é tratado como um objeto coletivo”, disse Danúbia, contando que certa vez uma parturiente pediu para não ser mais tocada pois isso já havia ocorrido várias vezes por diversos estudantes (residentes). “O bebê estava em uma posição diferente e eles queriam tocar para aprender”, disse Danúbia, deixando claro que não houve autorização da paciente e explicando que quem caracteriza a violência é a mulher.

Outra experiência de violência obstétrica foi contada aos participantes por Pollyana do Amaral, representante do Movimento de Mulheres pelo Parto Humanizado. Polly, como é chamada pelas companheiras de debate, contou que passou por uma cesariana no parto da primeira, de suas três filhas. “O processo de elaboração de violência é como o processo de elaboração do luto. Vi que fui enganada”, contou emocionada. “Há perdas maternas simplesmente pela falta de escuta. Mulheres ficam sozinhas após o parto e poder ser ouvida é um grande passo. É preciso que as leis sejam cumpridas e as normas respeitadas”, salientou Pollyana. Ela denunciou também a proibição da presença das doulas nas maternidades de Belo Horizonte durante a pandemia, o que é um direito previsto em lei no Município. “É preciso pensar em mecanismos de escuta das mulheres, pois é fundamental que a cidade compreenda isso e que possamos produzir dados sobre o tema”, avaliou Iza Lourença.

Direito à vida

Apesar de ser utilizado no Brasil e em países da América Latina, o termo violência obstétrica enfrenta resistência por parte dos profissionais de saúde. Por causa dessa falta de consenso na definição e terminologia, há dificuldades na mensuração desse tipo de violência. Também fica prejudicada a avaliação das consequências da violência obstétrica na saúde da mulher e do recém-nascido. Flávia Marcelle Torres é da defensoria pública de Minas Gerais e uma das coordenadoras do projeto Gestação Legal, que tenta atuar de forma preventiva e esclarecer para as mulheres situações de violência sofridas. “Tentamos trazer luz para essas violências. Muitas mulheres nem sabem que estão sendo violentadas. Essa violência foi naturalizada. As mães são submetidas a inúmeros procedimentos e violências e não podem reclamar. Penso que tudo isso está ligado à violência histórica contra a mulher”, afirmou Flávia, salientando que a mulher não pode ser retirada da posição de detentora e protagonista de sua história. Flávia representou a Defensoria Pública junto com Diana Fernandes de Moura, defensora pública especializada na Defesa dos Direitos da Mulher em Situação de Violência (Nudem/BH).

Para o médico obstetra do Hospital Sofia Feldman Edson Borges, há um tripé que deveria estruturar as boas práticas obstétricas no Brasil e ele não está posto. De acordo com ele, o poder público, os profissionais da área médica e as mulheres são aquilo que sustenta a proposta de uma relação humanizada com a gestação e o parto. “O governo atual quer propor um retrocesso aos avanços que ocorreram. A categoria dos médicos tenta manter a situação do jeito que está ou no máximo fazer pequenos ajustes. Dois pés desse tripé estão enfraquecidos”, afirmou, salientando que o movimento organizado de mulheres, junto com as doulas, é o único que se mantém firme. Edson destacou ainda que as enfermeiras obstetras têm competência para mudar o que está acontecendo e que essa busca de espaços não é uma guerra entre as categorias. A afirmação contou com o apoio de Bella Gonçalves: “Vivemos um momento tenebroso de aumento do controle dos corpos das mulheres”.

Racismo

Outro fator destacado na audiência foi a predominância no número de mulheres negras entre as que sofrem violência obstétrica. Integrante do Centro de Referência da Cultura Negra de Venda Nova e do movimento “Leonina Leonor é nossa”, Mônica Aguiar afirmou que violência e racismo andam juntos. “Esse tipo de violência passa pelos profissionais de saúde, mas também pela população. Passa por todo contexto da sociedade e assimetrias raciais que existem. Fere os direitos humanos e também os tratados assinados pelo Brasil. Falo isso de uma região onde 86% é de mulheres e maioria negras”, salientou Mônica, que mora em Venda Nova. Mônica é mãe de seis filhos e disse querer que as mulheres não passem pelo que ela já passou. “As boas práticas têm que existir e se sobrepor a questões morais, religiosas e racistas. Para isso, uma atitude importante, é ter transparência quanto aos dados”.

Macaé Evaristo (PT) lembrou os 43 anos da criação do Movimento Negro Unificado, comemorado neste 18 de junho. Para ela, é preciso resistir e reativar: “Resistir porque a violência obstétrica fere os direitos das mulheres e está enquadrada em um sistema que tem um dos seus braços no racismo, na negação da humanidade das mulheres, principalmente das mulheres negras. Reativar reconhecendo nossos saberes que estão localizados nos conhecimentos tradicionais. Me indigno muito quando olho e vejo o tanto de mulheres negras parteiras que foram retiradas desse processo”.

Leonina Leonor

“A Leonina Leonor quebra estas práticas que dizem que o dinheiro está acima da saúde. Precisamos do Leonina Leonor para ajudar a reativar esses saberes”, explicou Macaé, denunciando a desativação da maternidade que estava sendo construída em Venda Nova. “A defesa da Leonina Leonor significa a defesa da vida e não sofrer com violência obstétrica, pois a maternidade traz toda essa estrutura”, concordou Mônica Aguiar. Ela criticou o secretário unicipal de Saúde, Jackson Machado, que teria dito que a manutenção da maternidade seria um “culto ao romantismo ultrapassado”. “O sistema de saúde precisa se organizar para poder garantir os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres”, finalizou Mônica.

A Maternidade Leonina Leonor Ribeiro está pronta desde 2009, mas nunca atendeu uma paciente. A unidade custou aos cofres públicos R$4,9 milhões e corre o risco de não funcionar como maternidade. O local teria sido alvo de invasão, depredação e roubo de materiais. Segundo denúncia do Conselho Municipal de Saúde, a maternidade encontra-se abandonada e destruída, sem nunca ter recebido nenhum paciente. A unidade foi criada com o objetivo de melhorar o processo de humanização do parto na capital. De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, estudos da Rede Materno-Infantil mostram que não há demandas para mais uma maternidade na cidade.

Encaminhamentos

Três encaminhamentos serão dados pela Comissão de Mulheres a partir do debate durante a audiência. Segundo Iza Lourença, serão feitos um pedido de informação sobre o cumprimento das orientações da Comissão Perinatal por parte da PBH; ações de fortalecimento do programa Gestação Legal, da Defensoria Pública de Minas Gerais; e indicação ao Executivo para que as maternidades públicas e privadas de BH retomem a ação das doulas. “Há lei municipal que fala da obrigatoriedade do direito da mulher de ter uma doula contigo. Além do mais, elas já foram vacinadas”, disse Iza.

Também participaram da audiência as vereadoras Fernanda Pereira Altoé (Novo) e Professora Marli (PP), além da representante da Ação Integral à Saúde da Mulher de BH, Cristiane Veiga.

Assista ao vídeo da reunião na íntegra.

Superintendência de Comunicação Institucional

Audiência pública - Finalidade: Debater o tema Boas práticas no enfrentamento à violência obstétrica em BH - 15ª Reunião Ordinária - Comissão de Mulheres