Descumprimento de lei federal é entrave para avanço na educação contra o racismo
Lei que inclui obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" nos currículos escolares não é efetivamente cumprida
Foto: Cláudio Rabelo/CMBH
“Criamos uma lei que não está sendo cumprida. Quem monitora? Se não implementam, não estão cumprindo a lei”. O questionamento foi feito por Makota Cássia Kidoiale, do quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, durante audiência pública nesta quinta-feira (2/12) realizada pela Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo. O encontro teve a finalidade de discutir a importância da Lei Federal 10.639 no cenário das desigualdades raciais na educação. Sancionado em 2003, o texto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e cria a obrigatoriedade de inclusão no currículo de estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino sobre “História e Cultura Afro-Brasileira”. O conteúdo programático determinado pela lei federal inclui o “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, combatendo com isso o racismo nas escolas e na sociedade brasileira. A audiência foi solicitada pela vereadora Macaé Evaristo (PT), que disse que o racismo ainda está muito presente na sociedade e o currículo escolar é uma ferramenta importante para que “não haja hierarquização das pessoas por cor da pele ou raça”.
Monitoramento e cumprimento da lei como ferramentas legais
“Nunca estamos inseridos nessa história como realmente somos. Precisamos ir para as escolas e apresentar a nossa história. Eu vivenciei um processo de exclusão na educação, pois não queria esse lugar que nos foi colocado por ser um lugar subalterno”, disse Makota Cássia, que é mestra e professora no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Para ela, a lei não é cumprida. “Com todas essas leis a gente ainda vivencia que nada mudou. As pessoas veem negros como marginais e indígenas como selvagens. A educação não pode nos domar como cachorros. Não dá para continuar com esse modelo de educação que nos coloca como animais para tomar conta do que é deles”, disse Makota, cobrando das autoridades que a legislação seja respeitada e que a educação no Brasil não seja mais uma ferramenta de expropriação da história dos negros.
Uma das formas sugeridas durante a audiência para a efetivação da Lei 10.639/2003 é o monitoramento da política pedagógica e das ações realizadas nas escolas do Município. Segundo o doutor em educação e coordenador do Programa Ações Afirmativas da UFMG, Natalino Neves, há eixos e critérios já estabelecidos para a implementação da lei, o que facilitaria o monitoramento e a fiscalização. “Reforço que a regra não deve ser executada ao bel prazer, mas sim cumprida. Já estamos caminhando para 19 anos e acho que é o momento de pensar em critérios avaliativos de implementação”, disse Natalino, citando eixos fundamentais descritos no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Esses critérios têm como base, entre outras coisas, o fortalecimento do marco legal, das políticas de formação dos gestores, da produção e distribuição de material didático, das condições institucionais e da gestão democrática.
Ainda segundo Natalino, o Plano Municipal de Educação de Belo Horizonte traz a possibilidade de constituição de instrumentos teórico-metodológicos para a avaliação da implementação da legislação. Natalino se colocou à disposição para ajudar, por meio do Programa de Ações Afirmativas da UFMG, na criação de instrumento capaz de fazer o monitoramento e o diagnóstico de maneira sistêmica na rede municipal de educação.
Regramento é produto de luta contínua
Marcos Antônio Cardoso é filósofo, professor e militante do Movimento Negro. Segundo ele, a Lei 10.639/2003 surgiu a partir da luta do povo negro no Brasil e demorou décadas para ser efetivada. “Desde os anos 1930 a comunidade negra pensa em incluir (o tema no currículo escolar) e esperou até 2003 para a implementação. Isso se deve ao racismo e a professores que resistem a essa inclusão. Isso tem a ver com poder, humilhação e como o racismo exclui. Nesse sentido, a lei é importante”, disse Marcos Cardoso, explicando que para a comunidade negra a educação é “prioridade zero” pois tem como algumas de suas funções a formação de cidadania e a mobilidade social. O professor destacou ainda a importância do estudo da história dos negros e do seu papel na sociedade. Sem a obrigatoriedade “não vão dizer, por exemplo, da participação dos negros na construção de BH e por isso a importância da lei que inclui a África e os negros na construção do país”. Ainda segundo Marcos, em Belo Horizonte o tema já consta, desde 1990, na Lei Orgânica do Município, onde é tratada a importância da inclusão da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares das escolas de Belo Horizonte.
A geógrafa e pedagoga Jairza Fernandes Rocha trabalhou com o tema em outras regiões de Minas Gerais. Fora da capital por cinco anos, ela disse que a situação é pior em outros municípios, onde a lei federal não é cumprida. “No Sul de Minas eu percebi uma lacuna. As ações fora de BH não se assentam em uma política pública e não contam com aspectos legais”, disse Jairza, que também é professora e membro do Programa de Ações Afirmativas da UFMG. Segundo ela, em BH há professores, mestres e doutores que tratam do assunto e os kits escolares trazem material literário sobre o tema. Mesmo vendo uma diferença entre BH e cidades do interior do estado, Jairza acha que a capiral deixou de progredir na direção de um cumprimento efetivo da Lei 10.639/2003. “Nesse regresso a BH, percebo como se estivéssemos andando pra trás. Como se o que já construímos estivesse sendo jogado fora. A gestão não está sendo eficiente e há algo contraproducente sendo feito”, disse Jairza, enumerando a falta de apoio institucional, a personificação e não institucionalização da política e a disputa curricular como fatores que estão deteriorando gradativamente o que já havia sido feito.
Prefeitura apresenta avanços e reconhece dificuldades
Convidada pela Comissão de Educação para participar de mais um debate, a secretária municipal de Educação, Ângela Dalben, não compareceu. “Infelizmente a secretária não se faz presente nesta comissão. Parece que ela tem dificuldades em dialogar com a gente”, disse Macaé Evaristo, agradecendo a presença de Mara Evaristo e Maria das Mercês, ambas da Diretoria de Educação Inclusiva e Política Étnico-Racial da SMED. Em sua fala, Mara ressaltou que o racismo ainda é muito presente no ambiente escolar, dando exemplos de fato ocorrido em 2011, quando uma aluna escreveu uma carta denunciando situação de racismo em que vivia na escola e de caso ocorrido em novembro deste ano, quando aluna de 12 anos agrediu professora negra com ofensas racistas no estado estadunidense do Texas. Destacando a importância do trabalho que a diretoria em que trabalha tem no combate ao racismo, Mara explicou que há muitas vezes “fragilidade e impotência para quem está no lugar da gestão”.
Segundo Mara, várias ações são desenvolvidas pela PBH no combate ao racismo e na inclusão da história do povo negro no currículo das escolas municipais. Ela destacou a formação ofertada aos professores e “agendas virtuais” que buscam atingir o maior número possível de quem atua na gestão. “Temos o núcleo de Estudos Étnico-raciais e a formação ofertada pela UFMG”, explicou, salientando que, embora haja vários anos de formação, há um grupo de professores se aposentando e um grupo que chega com trajetória acadêmica “sem formação que assegure trabalho adequado”. “Precisamos debater com os profissionais que formam esses professores. Tem gente que chega sem o básico do básico do que a lei diz”, justificou a representante da Diretoria de Educação Inclusiva e Política Étnico-Racial.
Segundo ela, em 2018 não houve kit com material didático que tratasse do tema, mas o processo de seleção deste material já está sendo definido. Escolas inauguradas até 2004 chegam a ter 500 títulos de livros sobre a História Afro-Brasileira. O que não ocorre com escolas recém inauguradas. “Escolas inauguradas nos últimos anos não têm acervo ou o acervo é pequeno”, disse Mara, salientando a necessidade de materialidade adequada. Sobre a possibilidade de avaliação, ela explicou que a cada final de mandato, os diretores apresentam informações sobre a implementação da Lei 10.639, “assimilando os avanços e apontando os desafios”. Mara agradeceu ao professor Natalino Neves e disse que será ótimo contar com o Programa de Ações Afirmativas da UFMG nesse monitoramento.
Indicações e pedidos de informação serão feitos pela comissão
Destacando a preocupação com o arrefecimento da implementação da lei em Belo Horizonte, Macaé afirmou a todos que é preciso acionar mecanismos existentes na Câmara e também no Ministério Público. “As propostas surgidas aqui serão encaminhadas ao Executivo. Algumas nos levam a pensar inclusive em um projeto de lei”, disse a vereadora, dando destaque à construção de monitoramento do processo nas escolas, à realização, pelo Legislativo Municipal, de seminário sobre o tema e à ampliação da representatividade negra no Conselho Municipal de Educação. “Já passamos do momento de premiação para quem implementasse a lei que está aí há mais de 18 anos. O momento é de arguir as instituições e o poder público sobre o assunto”, finalizou Macaé.
Confira aqui a íntegra da audiência.
Superintendência de Comunicação Institucional