Instituição de Marco Zero pode vir a ser reparação histórica, segundo especialistas
Vila no entorno da capela da Boa Viagem teria sido primeira construção da nova capital. Demolida, deu lugar à catedral
Foto: Karoline Barreto/ CMBH
Belo Horizonte não tem um Marco Zero oficial e o reconhecimento da Igreja da Boa Viagem como ponto de origem da cidade seria uma retratação histórica. É o que afirmam especialistas que participaram de audiência pública da Comissão de Meio Ambiente, Defesa dos Animais e Política Urbana, realizada nesta segunda-feira (19/2). O debate, requerido por Sérgio Fernando Pinho Tavares (PL), teve como proposta subsidiar os vereadores quando da votação do Projeto de Lei 710/2023, que propõe o reconhecimento do ponto geográfico onde se encontra edificada a Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem como Marco Zero do Município. A visão modernista na qual a cidade de BH foi concebida teria levado ao apagamento da história, e o parlamentar se comprometeu, diante de um parecer contrário por parte da Fundação Municipal de Cultura, a encaminhar um pedido à Prefeitura de BH para que reavalie sua posição.
Sérgio Fernando contextualizou o debate informando que uma comissão de estudiosos apresentou um dossiê no qual consta que a cidade se inicia a partir da edificação de uma capela, feita por Francisco Homem Del Rei, no local onde hoje está a Igreja da Boa Viagem. Segundo o dossiê, no entorno dessa capela foi erguida uma vila que recebia os tropeiros. A partir dessa documentação, o grupo solicita que o poder público reconheça aquele ponto geográfico como Marco Zero de BH. “Fizemos um estudo desse dossiê e apresentamos um PL que já tramitou nas comissões. No dia da votação em 1º turno, o líder do governo na CMBH, Bruno Miranda (PSD), informou que a Fundação Municipal de Cultura tem um entendimento divergente. Essa audiência é para esclarecer essa controvérsia entre o dossiê e a FMC”, afirmou.
Representante da PBH, Yuri Mesquita assegurou que o poder público não é contrário à mudança. De forma técnica, ele explicou que existem três Marcos Zeros na capital mineira - a Praça Sete, a Igreja da Boa Viagem e o conjunto arquitetônico da Pampulha - , além de um marco geográfico, que é a Praça da Estação. “Entretanto, nenhum deles é oficial”, revelou. Yuri explicou que o projeto da Comissão Construtora da cidade tinha como objetivo romper com o Arraial Curral Del Rei e que, do ponto de vista histórico, é importante diferenciar o que era o Arraial Curral Del Rei e o que foi a Nova Capital de Minas, que mais tarde se chamou Belo Horizonte. Para ele, o fato de ser ou não um marco zero não diminui nem enaltece a história da região.
Questionado por Sérgio Fernando se o projeto da Comissão Construtora considerava o arraial que já existia em torno da capela da Boa Viagem, Yuri contou que havia uma clara intenção de demolir a edificação e construir outra igreja no Cruzeiro. “Temos cartas trocadas entre o bispo de Mariana e o governador do Estado indicando o desejo de demolição da capela. Houve uma negociação e a Arquidiocese impediu a demolição, à época”, disse. Segundo ele, a documentação da Comissão Construtora foi que corroborou a resposta da Fundação Municipal de Cultura.
Surpreso com o parecer negativo da Fundação Municipal de Cultura, João Alberto de Souza quis saber se o tema chegou a ser debatido pelo Conselho Municipal de Cultura e se o órgão concorda com o Marco Zero na Praça da Estação. Yuri esclareceu que a Praça da Estação é o Marco Zero geográfico e o que corrobora essa referência é que “ali chegaram os materiais que seriam usados na construção da cidade e é onde está a pedra fundamental da capital mineira”.
Apagamento histórico
Para o sociólogo João Vitor Ferreira, a discussão é “inócua”. Segundo ele, quando a cidade foi inaugurada, em 1897, já havia a Capela da Boa Viagem e a Capela Nossa Senhora do Rosário (a capela dos pretos). Pároco da Igreja, padre Marcelo Carlos Silva completou afirmando que a vila foi eliminada, destruída arquitetonicamente para dar lugar à primeira cidade planejada do país. “Estamos aqui defendendo o restauro de um patrimônio. O que nos une aqui é a defesa de um patrimônio histórico, cultural e paisagístico do qual a Igreja da Boa Viagem faz parte. Uma vez que não há um reconhecimento legal, porque não fazer uma correção histórica justa?”, questionou.
Ao concordar com o pároco, a historiadora Renata Cilene destacou o que chamou de projeto elitista e higienista de construção da nova capital. Ela destacou que, quando a região foi escolhida para ser a nova capital, 77% da população eram pretos e pardos, pessoas empobrecidas, do povo e que já estavam construindo a cidade. “A demolição da primeira igreja, além de romper com o estilo barroco e inaugurar o modernismo, teve a função de promover um apagamento histórico. Aarão Reis desconsiderou tudo o que já existia”, afirmou.
Sob essa perspectiva, Monsenhor Eugênio ressaltou que o PL vai promover não só um resgate histórico e político, mas um resgate da memória das pessoas que construíram essa história. “Se os vereadores tiverem alguma dúvida, que elas possam ser iluminadas com o que se apresentou hoje aqui”, finalizou.
Autor do requerimento da audiência e do PL para instituir o Marco Zero da cidade, Sérgio Fernando se comprometeu a encaminhar um pedido à PBH para que aproveite a oportunidade para fazer a correção histórica, reconhecendo a Igreja da Boa Viagem como Marco Zero da cidade; a correção de uma ação elitista, que pensou a cidade sem a presença de negors e pobres; e a correção das consequências advindas do conflito entre Barroco e Modernismo, que resultou no apagamento do que já existia aqui. “Nós, que começamos a audiência pública pensando em fazer um resgate apenas do ponto de origem, passamos pela questão do resgate e da correção de uma decisão elitista e também de um embate entre o barroco e o modernismo”, afirmou.
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